terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Tenho na memória alguns momentos da minha infância e muitos deles acabam ressurgindo por elementos sensoriais e emocionais ao longo da minha história. Fato é que a maioria foram eventos triviais e ocorreram no relacionamento ordinário com minha família (pais e irmão, avós, tios e primos). Dentre as memórias, e para o que importa aqui, lembro-me de fazer visitas regulares a um determinado abrigo1, para brincar com as crianças e levar brinquedos e doces, especialmente em datas comemorativas, como o Natal. Pela influência natalina, tal memória me veio arrebatadora nos últimos dias.
Agora já adulta e, por vezes, atuando como Promotora de Justiça na proteção da infância e juventude, dei-me conta que os antigos abrigos são os atuais serviços de acolhimento, e que as visitas, outrora admitidas sem qualquer burocracia (bastava chegar e entrar), agora dependem de autorização judicial. Percebi, também, que isso reduziu, drasticamente, o contato da sociedade com a realidade das crianças e adolescentes institucionalizados.
Com esse pano de fundo, eu me autodeterminei a pensar (e assim publicar nessa coluna) formas de preservar as memórias afetivas dessas crianças e adolescentes, garantindo-lhes meios de convivência familiar, por intermédio da sociedade civil, ou seja, pela participação direta de pessoas, como eu, você e qualquer outra que conheçamos, na vida de crianças e adolescentes que vivem em serviços de acolhimento institucional.
Enquanto sociedade muitos não sabem que a convivência familiar constitui direito essencial a todas crianças e adolescentes, previsto em diversos diplomas normativos, notadamente na Constituição Federal (art. 227, CF), no Estatuto da Criança e do Adolescente – lei 8.069/90 (arts. 4º e 16, V, ECA) e na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança – Dec. 99.770/90 (art. 9º, I).
De fato, a família guarda papel fundamental na proteção das crianças e adolescentes enquanto pessoas em situação peculiar de desenvolvimento, porque é no bojo desse agrupamento humano que eles passam a se reconhecer como sujeitos de direitos e destinatários da doutrina da proteção integral, sendo a família condição para uma formação saudável, criação de identidade, fortalecimento da cidadania e construção de memórias afetivas.
Por isso, o legislador previu como decorrentes do papel da família o “princípio da responsabilidade parental” e o “princípio da prevalência da família” (art. 100, IX e X, ECA). Aquele admite a intervenção estatal e a aplicação de medidas protetivas sempre que os pais violarem deveres para com seus filhos; já este, impõe que tal intervenção deva ser excepcional e priorizar a manutenção dos infantes junto à sua família (natural ou extensa), com o fortalecimento dos vínculos e eventuais direcionamentos psicoemocionais a seus membros2.
Os conceitos de família natural e extensa, acima mencionado, estão previstos no art. 25, caput e parágrafo único, ECA, respectivamente, sendo a) “família natural” aquela compreendida pelos pais e seus filhos ou qualquer deles e sua prole, sendo natural por decorrer do vínculo de sangue entre pais (genitores) e filhos; e, b) “família extensa” aquela que se estende para além da unidade dos pais e filhos, ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais os infantes convivam e mantenham vínculos de afinidade e afetividade.
Ao lado destes conceitos, de natureza biológica, o legislador estatutário previu também a “família substituta”, decorrente da transferência do vínculo de parentalidade ou poder familiar, formando-se, exclusivamente, por laços de afeto e aperfeiçoando-se por meio da decisão judicial de adoção (art. 28, ECA).
Enquanto sociedade, poucos sabem que, além da adoção, a configuração de uma “família substituta” pode se consubstanciar, também, em formato provisório e sem a transferência destes vínculos, através de guarda ou tutela judiciais. E isso costuma se dar com a finalidade de viabilizar cuidados em caráter transitório e excepcional, efetivando-se perante membros da família extensa (sempre preferível) ou terceiros cadastrados, ao que se convencionou chamar de “família acolhedora”, perdurando somente até a reintegração do infante à sua família ou pela comprovada impossibilidade de fazê-lo.
Da mesma forma, enquanto sociedade tendemos a esquecer que crianças e adolescentes devem ser mantidos no bojo de uma família, seja a sua própria família (natural ou extensa), seja uma família substituta (adotiva ou acolhedora). Isso é fundamental! Assim, a inserção e manutenção em serviços de acolhimento (antigos abrigos) devem ser situações absolutamente residuais e excepcionais, e jamais podemos nos esquecer disso.
Ocorre que, na prática, muitas crianças e adolescentes estão acolhidos (segundo dados do SNA, hoje são 30.511), sem qualquer referência de família, passando longos e importantes períodos de sua vida institucionalizados, ou seja, crescendo e forjando sua personalidade, caráter e memórias através de convivências e relacionamentos interpessoais exclusivos com outros acolhidos e com prestadores de serviços (cuidadores, psicólogos, assistentes sociais).
A despeito da importância destes vínculos estabelecidos dentro dos serviços de acolhimento, a verdade é que nenhum deles substitui o vínculo familiar, de modo que tais crianças e adolescentes podem passar uma vida inteira sem tal referencial, com consequências psicológicas e afetivas irreversíveis. O que nos faz concluir que, de nada adianta ter previsão constitucional expressa (que é dever da “família”, “sociedade” e “Estado” assegurar, dentre outros, o direito à convivência familiar), se nenhum destes agentes, isolada ou conjuntamente, promovem a concretização de tal direito.
Diante do exposto, e amarrando com a proposta da presente reflexão, como a sociedade, representada por qualquer pessoa, pode fazer diferença na vida de crianças e adolescentes que vivem em serviços de acolhimento?
Destacarei 2 dos principais mecanismos a viabilizar que qualquer pessoa (como eu e você) seja capaz de marcar, positivamente, a vida de crianças e adolescentes institucionalizados, permitindo que tenham uma experiência (ainda que mínima) de convivência familiar:
ACOLHIMENTO FAMILIAR: É previsto em lei (art. 34 e 260, §2º, ECA) como alternativa à institucionalização de crianças e adolescentes afastados de seu núcleo familiar. Nesse caso, ao invés de irem para o serviço de acolhimento, vão para a residência de uma “família voluntária” (pessoas previamente selecionadas, capacitadas e cadastradas no programa público), cuja função é vincular-se afetivamente3 e garantir-lhes os cuidados individualizados em ambiente familiar, sendo remunerada pela Prefeitura para tal fim. Tal acolhimento se formaliza por meio de guarda judicial temporária, que vigerá, provisoriamente, até que o(s) infante(s) possa(m) retornar ao convívio de seus familiares ou ser(em) adotado(s), quando a reintegração à família se mostrar inviável.
APADRINHAMENTO AFETIVO: Previsto no art. 19-B, ECA, é um mecanismo de aproximação de crianças e adolescentes acolhidos com pessoas da comunidade. Nessa modalidade, padrinhos e madrinhas afetivos (pessoas previamente selecionadas, capacitadas e cadastradas no programa, que pode ser público ou privado) assumem o compromisso de proporcionar uma vivência fora do ambiente institucional, com o objetivo de estabelecer vínculos afetivos individualizados e duradouros, bem como proporcionar convivências familiar e comunitária. Tal programa foca, prioritariamente, em acolhidos com previsão de longa institucionalização (normalmente, já com destituição do poder familiar, mas sem perspectiva de adoção). Formaliza-se por meio autorizações internas do próprio serviço de acolhimento, exclusivas para visitas e passeios com o/a afilhado/a.
Como se vê, os programas acima indicados estão previstos em lei e deveriam ser fomentados pelo Poder Público como ferramentas de oportunização de convivência familiar para crianças e adolescentes institucionalizados, por meio da mobilização e efetiva participação da sociedade.
No caso das famílias acolhedoras, os programas devem ser criados, mantidos e subsidiados pelo Poder Público, por meio de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, como verdadeira política pública de proteção a crianças e adolescentes afastados de suas famílias. Infelizmente, contudo, muitos municípios não possuem o programa4 (mesmo após 11 anos de sua inserção no ECA) e os que possuem não promovem a adequada sensibilização da comunidade local, sendo poucos os exemplos de sucesso no país5. Não por acaso muitas pessoas nunca ouviram falar sobre acolhimento familiar e, por isso mesmo, não se tornaram uma família acolhedora, embora tenham perfil.
Já quanto aos programas de apadrinhamento afetivo, podem ser executados por órgãos públicos ou organizações da sociedade civil6. Infelizmente, o incentivo público também tem se revelado insuficiente no fomento e implementação de tais programas, sendo que os poucos que existem dependem de financiamento privado e/ou de institutos e organizações relacionadas à causa infanto-juvenil. Embora estes programas não sejam remunerados (diferentemente das famílias acolhedoras, que recebem recursos para manutenção da criança acolhida, os padrinhos afetivos não auferem qualquer auxílio dessa natureza), exigem subsídio financeiro contínuo para capacitação e acompanhamento dos padrinhos e da equipe técnica responsável pela intermediação destes com a criança/adolescente, de modo que todos sejam treinados emocionalmente a estabelecerem vínculos somente quando tiverem condições de sustentá-lo, pois o impacto de um rompimento repentino de vínculos nesses infantes tende a ser mais prejudicial do que a própria ausência de vínculos.
A par das considerações críticas sobre a falta de empenho público na criação, implementação e manutenção desses programas, parece restar claro que qualquer pessoa, enquanto membro da sociedade, pode participar ativamente da vida de crianças e adolescentes que vivem em serviços de acolhimento, sendo os dois mecanismos indicados formas de tentar suprir a convivência familiar que lhes é ceifada desde tão cedo (muitas vezes, desde sempre).
*IMPORTANTE:Para maiores informações sobre os programas e sobre como se tornar “família acolhedora” (lembrando que qualquer pessoa, ainda que solteira ou em formatos familiares não convencionais pode se cadastrar) ou “madrinha/padrinho afetivos”, procure a Vara da Infância e Juventude da sua cidade ou do bairro mais próximo (ou pesquise em sites de buscas por mais informações: Só não vale ficarmos parado quando somos inspirados a ajudar!).
Angélica Ramos de Frias Sigollo é promotora de Justiça em São Paulo. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Integrante do Proinfancia – Fórum Nacional dos membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Instagram: @angelicapjsp

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