Fonte: Revista Consultor Jurídico
O legislador processual de 2015 regulou minuciosamente os parâmetros dos honorários de sucumbência, fixando-os, de ordinário, entre 10% a 20% do benefício econômico advindo à parte vencedora. Atento, o legislador ainda fixou exceções regulando-as também em pormenores, como nas causas em que a Fazenda Pública for parte. Somente se na causa inestimável ou irrisório for o benefício econômico estaria autorizado o juiz a utilizar a apreciação equitativa.
Entretanto, a aplicação do comando legal tem encontrado resistência de parte da jurisprudência, que foge ao estrito ditame da norma para buscar razões em equidade e na necessidade de vetar o que chama de “enriquecimento sem causa” sempre que os honorários incidentes forem por ela considerados excessivos.
Isso é frequente em causas milionárias, em que a parte derrotada sucumbe em valores na casa de dezenas de milhões de reais, ou até mais, e que, pelo texto da lei, caberia ao advogado vencedor honorários de alguns milhões de reais, se o magistrado obedecesse aos parâmetros do novo diploma processual. Entretanto, por considerar honorários nesses patamares um valor excessivo e capaz de dar ensejo ao alegado enriquecimento sem causa, essa corrente jurisprudencial abandona o comando legal e arbitra os honorários de sucumbência em valor infinitamente menor ou até mesmo irrisório em face do critério fixado na lei, tornando morta a sua letra.
Não raro, mesmo em caso de honorários arbitráveis apenas na casa de uma dezena, ou pouco mais, de milhares de reais, reduzem-nos somente a algumas unidades de milhar, frustrando o profissional vencedor e os objetivos da lei. Recentemente, numa causa em torno de R$ 240 mil, o juiz do feito, invocando a equidade, arbitrou os honorários de sucumbência em R$ 2 mil, afirmando que R$ 24 mil seria excessivo e, em afirmativa que parece ultrapassar o limite do razoável, reverberou contra a fixação legal afirmando ter sido lobby de uma classe que apenas queria se beneficiar, e, invocando o poder dos juízes, afirmou ser sua atribuição corrigir o legislador. O Superior Tribunal de Justiça colocou em pauta esse assunto para uniformização, mas o julgamento está suspenso.
No diploma processual, ao regular clara e minuciosamente os honorários sucumbenciais, objetivou-se tanto criar uma barreira para ajuizamento de demandas temerárias, em face do risco da alta sucumbência, quanto reconhecer uma realidade crescente na prática: a importância dos honorários de sucumbência para profissão legal, cuja remuneração é cada vez mais vinculada ao sucesso da causa — a sucumbência, já há algumas décadas, passou a ser essencial fonte de receita para os profissionais. Esses dois foram os objetivos estratégicos do legislador.
Mas por que esse irredentismo de alguns juízes? Por que se escandalizam com honorários mais elevados, mesmos com os relativamente menores valores, estes na verdade mais frequentes? Afinal todos são frutos de trabalho honesto, dentro da praxe do mercado e do parâmetro fixado pelo legislador.
A primeira reflexão é se caberia ao juiz fugir do comando legal de 10% a 20%, considerando que ele reflete o parâmetro histórico e usual do mercado, como observou João Monteiro, em parecer datado de 1903, ressaltando que o parâmetro, “atendendo ao costume do Foro”, “costuma ser de 10% a 20%”? Ora, como ou por que essa prática de mercado, quando adotada pelo legislador, passou a ser considerada “excessiva” ou implicar em “enriquecimento sem causa”?
Para alguns, trata-se de muito dinheiro para um advogado receber no processo judicial, mesmo que o feito dure anos ou até década. A atuação pode ser curta, ocasional ou longa, não importa, dizem eles haver “enriquecimento sem causa” do profissional. Mas quando um corretor de imóveis consegue um comissão milionária na venda de um imóvel, trabalhando pouco mais do que alguns meses, não veem “enriquecimento sem causa”. Ou quando um trader, numa tarde, ganha milhões em alguma operação de bolsa ou mercado, não se trata de “enriquecimento sem causa”. Ou quando um leiloeiro recebe comissão de alguns milhões pela venda bem-sucedida de um valioso imóvel numa tarde de leilão, não há “enriquecimento sem causa”. Todos esses ganhos extraordinários são eventos relativamente raros, pouco frequentes na vida de um profissional (e, às vezes, simplesmente nunca lhe acontecem), mas são ganhos lícitos e legítimos, produtos normalmente de muito tempo de trabalho, conhecimento e reputação construídos em longas carreiras, e que, de resto, são o grande objetivo econômico do exercício de uma profissão liberal.
A lógica econômica da profissão liberal assenta-se em duas premissas: uma é obter ganhos de maior valor do que o obtido pelo assalariado ou na função pública em troca do risco e das incertezas cotidianas que a profissão liberal apresenta; outra é formar largo patrimônio e reservas financeiras, tanto para enfrentar graves reveses, tempos de penúria, doenças longas etc. — não tenha ilusão o profissional, elas ao longo da vida acontecerão certamente — quanto para a constituir uma provisão essencial para aposentadoria.
Não só isso, essa interpretação jurisprudencial em comento impõe ao advogado uma situação ilógica: seus ganhos, fixados ignorando a realidade do mercado, são limitados, mas sua responsabilidade não. Se um advogado causar um dano ao cliente, perecendo o objeto da ação, deverá ele indenizá-lo pelo valor integral do bem, nenhum juiz irá fixar o valor da indenização em quantia mínima invocando equidade “em face do elevado valor do bem”.
Ora, portanto, essa suposta e invocada equidade para afastar o texto da lei é, na verdade, a “equidade odiosa”, a falsa equidade, que só tem a aparência de equidade, pois ela é discriminatória e ilógica, marginaliza uma atividade inteira e quebra-lhe a espinha dorsal econômica. Há claro tratamento desigual entre profissões liberais em situação em que o tratamento igualitário se impõe.
Há, ainda, outro prisma.
Há um provérbio inglês que diz: “O dinheiro é como adubo, é inútil se não for espalhado”. Infelizmente, há ainda um pensamento de matriz concentradora que, involuntariamente ou não, funda uma grave hesitação no Judiciário de impedir a circulação de riquezas, não raro poupando poderosos de alguns ônus impostos pelo legislador, em favor do particular, contra determinadas condutas daqueles; ou pela hesitação em aplicar multas ou fixar compensações efetivas para danos em casos concretos individuais. A matriz dessa jurisprudência é a mesma: impedir um suposto enriquecimento ilícito, mas cujo efeito paralelo é facilitar a conduta violadora da norma e proteger o entesouramento de recursos financeiros que deveriam ter outra destinação.
A circulação do dinheiro produz riqueza, tornam prósperos povos, cidades, países, portanto, o seu entesouramento é indesejável do ponto de vista econômico; já o seu reverso é benéfico.
Infelizmente, o Brasil historicamente caminha no sentido contrário: ao invés de fazer circular riquezas, e incentivar essa situação como benéfica, o Estado patrimonialista e, em segundo momento, o estamento que se lhe gravita têm sido conjuntamente o seu grande concentrador, e eles têm sido seu fieis a esses modelo. Seja, quase conscientemente, como observou Raymundo Faoro, no seu clássico “Os Donos do Poder — Formação do Patronato Brasileiro”: “O súdito, a sociedade, se compreende num aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar num caso extremo”. Seja, quase involuntariamente, como demonstrou Jorge Caldeira, no igualmente importante “História da Riqueza no Brasil — Cinco Séculos de Pessoas Costume e Governo”, em que regista períodos de maior desenvolvimento, quando o Estado diminui sua presença ou quando se liberam recursos para o setor privado.
Dessa forma, data venia dos que pensem contrariamente, não há equidade alguma em ignorar o comando legal expresso para torná-lo letra morta; muito menos há enriquecimento sem causa ao se fixar honorários compatíveis com a praxe do mercado, aliás, pelo contrário, atentar contra tal lógica, além de violar materialmente a garantia constitucional de liberdade iniciativa em profissão, por quebrar a sua espinha dorsal econômica, é, na verdade, uma capitis diminutio dessa nobre profissão liberal, tratando-a de maneira desigual em relação às demais, também violação ao princípio constitucional da igualdade.
Revista Consultor Jurídico, 25 de janeiro de 2021, 9h14