Reflexões sobre a Lei nº 13.465/2017 – Usucapião – Parte 42.
Art. 216-A -Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com:

I – ata notarial, lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e de seus antecessores, sqq. conforme o caso e suas circunstâncias, aplicando-se o disposto no art. 384 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil);

II – planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes;

III – certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente;

IV – justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel.

§ 1º O pedido será autuado pelo registrador, prorrogando-se o prazo da prenotação, até o acolhimento ou a rejeição do pedido.

§ 2º Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, o titular será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar consentimento expresso em quinze dias, interpretado o silêncio como concordância.

§ 3º O oficial de registro de imóveis dará ciência à União, ao Estado, ao Distrito Federal e ao Município, pessoalmente, por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos, ou pelo correio com aviso de recebimento, para que se manifestem, em 15 (quinze) dias, sobre o pedido.

Como ficou dito, se o prédio usucapiendo confrontar com um imóvel público – seja de uso comum do povo, de uso especial ou dominical – matriculado ou objeto de transcrição, a pessoa pública que seja titular do domínio desse imóvel deve ser, no processo extrajudicial de usucapião, notificada, nos termos do que dispõe o § 2º do art. 216-A da Lei 6.015, e não cientificada segundo o § 3º desse mesmo art. 216-A (sempre suposto, quanto à exigência de notificação, que não haja concordância expressa mediante assinatura na planta que deve instruir o pedido).

A distinção não teria relevo algum – até porque a notificação é só uma espécie da cientificação, além de igual o prazo correspondente à manifestação facultada em ambas as hipóteses (prazo de 15 dias) –, não se dera que se estabeleça, só em relação ao quadro previsto no § 2º do art. 216-A, que do silêncio do notificado haja de extrair-se sua concordância com o pedido.

Isto quer dizer: a aplicação da regra do §3º do art. 216-A (a de dar ciência) não se induz, do silêncio posterior do cientificado, a presunção de concordância com o pedido. Mas, diversamente, se houver a notificação do § 2º do mesmo artigo, já se prevê essa concordância presumida.

A pergunta, então, que parece oportuna diz respeito à admissibilidade deste efeito presuntivo em relação à pessoa pública.

Já aqui se anteciparam algumas observações acerca desta matéria (cf. item 45), destacadamente as dificuldades de harmonizar, também (e isto não é pouco, na realidade) ante o quadro da distinta responsabilidade civil do juiz e do registrador, o espelhismo entre a revelia no processo jurisdicional e a “revelia” no processo extrajudicial de usucapião.

Os efeitos da revelia são de dois modos. Um, formal ou processual (vidē, a propósito, o que dispõe o art. 346 do Código brasileiro de processo civil de 2015). Outro, efeito material ou substantivo.

O efeito substantivo da revelia não se aplica à União, aos estados, ao Distrito federal e aos municípios, em razão da indisponibilidade de seus possíveis direitos (arg. inc. II do art. 345 do Código processual civil).

Desta maneira, ainda quando em dados casos que se exija, em rigor, a notificação – e não a genérica ciência (o que, em sua efetivação, quase nada ou mesmo nada implica) –, repita-se: embora se exija a notificação da União, dos estados, do Distrito federal e dos municípios, do silêncio que acaso se siga dessa notificação não se deve extrair o efeito substantivo da presunção de concordância.

Todavia, de não se presumir essa concordância não cabe, entretanto, concluir que haja discordância. Houvera esta, dar-se-ia a imposição de observância da regra do § 10 do art. 216-A: “Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum”.

Melhor parece, com efeito, que, não cabendo extrair, de maneira simplificadora e com o só silêncio da pessoa pública, a conclusão qui tacet consentire videtur, todavia não caiba entender (e isto com maioria de razão) que desse silêncio emerja a discordância (qui tacet aversare videtur).

De sorte que, sem presumir a concordância, tampouco o oficial de registro deva presumir discordância com o só silêncio das pessoas públicas notificadas, adotando, isto sim, a atitude prudencial de quem tem a tarefa de ser um custódio do bem comum, realizando, o quanto se mostre conveniente nas circunstâncias que se apresentem em cada caso, as diligências que a lei lhe faculta realizar (cf. o que enuncia o § 5º do art. 216-A), evitando, pois, o mais possível – com consciência, mas sem escrúpulos; com prudência, mas sem temores burocratizantes – o detrimento do interesse público, mormente o interesse público primário (qual seja, o da própria comunidade).

Ricardo Dip

Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, de cuja Seção de Direito Público foi Presidente no biênio 2016/2017. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, em Jornalismo, pela Faculdade de Comunicação Social “Cásper Líbero”. Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito. É membro fundador do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (Portugal). É acadêmico de honra da Real de Jurisprudencia y Legislación de Madri (Espanha). É diretor da Seção de Estudos de Direito Natural do Consejo de Estudios Hispánicos “Felipe II”, de Madri, e membro do Conselho de Redação de sua revista Fuego y Raya, revista hispanoamericana de história e política. É membro do comitê científico do Instituto de Estudios Filosóficos “Santo Tomás de Aquino”, de Buenos Aires. Integra o Conselho Acadêmico da Seção de Filosofia do Direito de El Derecho: Diário de Doctrina y Jurisprudencia, sob a rubrica da Universidade Católica Argentina. É membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Notarial, editada pelo Colégio Notarial do Brasil. É membro de honra do CENoR, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. É membro da Academia Peruana de História. É titular da cadeira n. 12 da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário e da cadeira n. 23 da Academia Notarial Brasileira. Autor de vários livros e artigos publicados no Brasil e no exterior (currículo atualizado até 24 de janeiro de 2018).

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